domingo, 24 de agosto de 2014

Prateada


Venho de longe somente com a força dos braços
Pra lidar com corda e potro tenho e só esta folha  de aço.
Este par de setes dente que carrego nos meus garrões
Pra fazer bom cavalo pra os outros e morar nos galpões
E talvez fazer pingos dos buenos pras os tiros de laço.

Seu bolicheiro lhe pergunto, onde posso me justar?
Algum lugar deve ter alguma potrada pra domar?
Mas fome, nestas distâncias que ando no corredor...
Já vem me pegando as uns dias, me causando ate dor.
Só tenho esta xerenga, de bom corte, pra cambiar...

Tenho fome! Mas não tenho, nenhuma plata.
Venho lá do rincão das lajes sob as patas
Desta tostada cabana, pois ganhei só as estradas.
Depois que vi o fel nos olhos de minha ramada.
Não entendi, ganhei o mundo só com esta faca.

Dizem pela boca do povo que onde ficou os olhos
Que me levaram o sono e machucaram meus sonhos...
Também vertem cristais dos olhos, mirando além do corredor.
Que mal fiz seu bolicheiro, por ser domador?
Somente sai com meus olhos fundos e molhos.

Saltei pelo mundo garrando potros na força do braço.
Mas já faz mais de dias que procuro serviço?
E não acho, então vim te pedir, onde que tem?
Talvez o senhor saiba, de um lugar onde tenha também?
Mas a fome seu bolicheiro, me grita...que tenho só esta folha de aço...

Pra trocar, sou só um ginete! Que anda pelo mundo
Rolando macega, tocando potros como um vira-mundo.
Sem coplas pelos beirões das estradas, dormindo com a lua...
Me acalambrando sonhos de fantasmas de alma nua.
E assim vim rolando por ai, virando a coxilha, somente vindo.

Seu bolicheiro, troca comigo esta faca de bom corte e bom aço?
O cabo e prata entalhada, em flores pra o sentido do braço
Quando o tempo é mais feio pelos rumos desta vida.
Mas a fome me grita em minha barriga, pois ainda procuro lida.
Pelo pó dos corredores já quase sem nenhum viço.

Sim, tu vem teatino garreando esta tostada...
Nos teus planos de lida, na vida já sem nada.
Troco tua xerenga, por hora e sei aonde tem serviço,
Potradas pra tu enfrenar, pela tuas puas de aço.
E quando puder voltar... paga, e te devolvo sua prateada.

Obrigado seu bolicheiro, faz dias que ando por ai assim.
Vou-me atrás, e quando tiver o valor e lhe pago sim,
Este prato de feijão com ovo, que me mata a fome.
Que há muitos dias não durmo, e que ainda me consome
Dentro de min, que já parecia quase não ter mais fim.

Um dia voltei, quatro potros atado um no outro.
As minhas puas de aço cantando pras os astros.
Plata sobrando nos bolso da bombacha nova...
Pilcha buena não a aquela retovada de sova
Das lidas de campo e de corda e de potros.

Entrei com mesmo entono sob as mesmas garras
Pelo portal do bolicho apeando sob a mesma terra
Que entrei em outro dia com fome já sem rumo de vida.
O bolicheiro não me conheceu, por não estar em pilcha de lida
Mas eu vi... minha prateada, guardada bem ali, em uma cristaleira.

Apresentei-me, com o respeito daquele amigo.
Conheceu-me quando a vida estava difícil e me deu abrigo.
Num destino ruim de vida pra quem andou por ai perdido.
Quando dei buenas e já conheceu minha voz sorrindo
Dizendo-me que bem, tudo bueno contigo?

Sei que veio buscar a sua prateada que um dia trocou
Por comida, e sei que ela tua fome matou.
Ela nunca saiu do bolicho ficou ali amostra pra os outros
De um que cruzou com fome sob a cruz dos potros
Carregando a vida, que o corredor que levou.

Mil graçias seu bolicheiro, hoje tenho plata pra lhe pagar.
Aquele prato de comida que um dia tive que trocar
Por minha prateada por culpa da fome e dos destinos.
Veja lá fora, tenho quatro potros que não perdem o tino.
Pagamento já de domas, pra nos já cambiar.

Ajeitei aquele ruano pensado na minha prateada.
Mas tenho plata pra lhe pagar toda esta divida...
Ala pucha faz mais de ano, que cruzei por aqui.
E minha prateada ficas-te sempre ali?
Esperando-me, minha volta pela mesma estrada.

Obrigado meu amigo deus lhe pague com minha gratidão
Se hoje tenho um rancho e um galpão;
Bonito pra enfrenar potro foi por tua ajuda quando vim.
Rolando estradas com a vida que já estava quase no fim.
Mil graçias agradeço a deus pelo senhor, com toda a devoção.

Tu andou teatino, em tempos mais feios pelos caminho
Mas no dia que cruzou por esse bolicho, sozinho.
Tocando aquela tostada cabana, já vi pelo andar
Que procurava o tudo no nada, além das potradas pra domar
Um rumo pra vida, que agora segue no seu trilho.

Enfenando ao longo do tempo, tanto potros...
Se fez domador pra fazer pingo pra os outros
E a prateada ficou ali bem guardada a mostra pra tantos
Que me perguntaram o preço, mas voltou pra esses campos
Com a mesma luz que chegou nos olhos, dos astros.

Obrigado, meu amigo que o tempo lhe pague por isso
Me ajudou, e guardou minha xerenga, e agora
Me salta este sorriso no rosto, por saber...
Que por tanto tempo guardou minha prateada, pra agora ver
Quando voltei pela mesma porta, com todo o viço.